OBS: Até 2010: razão observada. De 2010 a 2026: razão projetada.
Fonte: Estudo Demografia Médica no Brasil (CFM/Cremesp), 2012.
Por que o Governo Federal está equivocado?
O número “mágico” (e sem fundamento) de 2,5 médicos por 1.000 habitantes
São equivocados os argumentos do governo em relação à concentração de médicos no Brasil e sobre o aumento de vagas em cursos de Medicina como suposta solução para a falta localizada de profissionais. Sem nenhuma fundamentação científica e utilizando comparações primárias com taxas de médico/habitante de outros países, o governo federal insiste no número de 2,5 médicos/1.000 habitantes para o Brasil. Tal meta, além de populista, é insuficiente para orientar uma política pública de abertura de mais vagas de Medicina e posterior fixação de médicos nos locais e serviços com carência de profissionais.
Organizações internacionais (OMS1 e OECD2) desaconselham comparações entre países utilizando pura e simplesmente a razão médico-habitante sem considerar, na comparação, a extensão do território, o sistema de saúde adotado, o nível socioeconômico, o perfil demográfico e epidemiológico.
Ao lado, trecho de documento da OMS-OPAS: “A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) não definem ou recomendam o número desejável de médicos, enfermeiros e dentistas por habitante. (...) A definição de índices, como número de leitos ou médicos por habitantes depende de fatores regionais, socioeconômicos, culturais e epidemiológicos, entre outros, que diferem de região para região, país para país. Isso torna impossível, além de pouco válido, o estabelecimento de uma “cifra ideal” a ser aplicada de maneira generalizada (...) (..) O Brasil, país de dimensões continentais, ilustra bem o problema: o número ideal de médicos e leitos para uma população rural na Região Norte, onde um dos principais problemas de saúde é a malária, não pode ser o mesmo que o exigido na Região Metropolitana de São Paulo, que tem alta concentração de população urbana e cuja demanda por assistência médica e internação hospitalar tem como causas principais as doenças crônicas (ex: câncer e diabetes) e fatores externos (ex: acidentes de trânsito, homicídios e violência)3.
No Brasil, é inadequado o uso de uma taxa nacional médico/habitante
Na opinião do CFM/Cremesp, ao estabelecer um único parâmetro ou meta nacional de médicos por habitantes, o governo federal criou um indicador de pouca credibilidade e de baixa utilidade.
Taxas de médico/habitante de países desenvolvidos, com população menor, território restrito e sistema de saúde homogêneo não podem ser comparadas com um país como o Brasil, com imensas desigualdades regionais e com um sistema de saúde peculiar, um misto de público e privado com reflexos no financiamento, na prestação e no acesso a médicos e serviços de saúde.
A taxa atual de 1,9 médicos por 1.000 habitantes no Brasil (ou a pretendida pelo governo, de 2,5) não quer dizer muita coisa, se não forem consideradas as diferenças internas. Por exemplo, no setor privado no Brasil existem 7,6 postos de trabalho médico ocupados por 1.000 habitantes, superior à taxa médico-habitante de todos os países do mundo e três vezes maior que a taxa pretendida pelo governo.
Na Região Sudeste, em 2011, já existiam 2,61 médicos por 1000 habitantes. Acima, portanto, do número de 2,5 médicos/1.000 habitantes do governo. Três unidades da Federação – Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo – já apresentavam em 2011 taxas acima de 2,5 médicos por habitantes. Dezoito das 27 capitais estavam acima desse número em 2011. Onze capitais (Vitoria, Porto Alegre, Florianópolis, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Recife, Curitiba, São Paulo, Goiânia, Salvador e Aracaju) contavam com mais de 4 médicos por 1.000 habitantes. São taxas à frente daquelas exibidas pelos países mais ricos da Europa e muito acima dos números norte-americanos e canadenses.
Veja-se ainda o exemplo do Estado de São Paulo. O município de Botucatu, no interior paulista, tem, em 2012, 5,93 médicos por 1.000 habitantes. Outras três cidades do Estado (Santos, Ribeirão Preto e Campinas) têm razão médico habitante igual ou maior que 5, acima de todos os países do mundo, com exceção de Grécia e Cuba.
As 20 cidades melhor contempladas em médicos no Estado de São Paulo já mostram em 2012 taxas superiores àquela vista como ideal pelos planos do governo federal. Com a autorização do MEC de abertura de novos cursos no Estado (cinco cursos em 2011/2012) possivelmente haverá superpopulação de médicos onde a concentração já é altíssima. No entanto, em nove Estados, a taxa médico habitante era inferior a 1,2 médicos/1.000 habitantes em 2011. Alguns Estados e municípios brasileiros ostentam taxas comparadas a países africanos. Mas não há nenhuma garantia de que o boom de novos médicos anunciado pelo governo irá beneficiar esses locais.
Um morador da capital de qualquer estado do Sul e Sudeste contava em 2011 com quatro vezes mais médicos que um habitante do interior de qualquer outra região (Demografia Médica no Brasil, 2011).
O governo federal faz divulgar que o problema é a falta generalizada de médicos no Brasil, expressa em uma única taxa para todo o país. Mas o problema é outro: é a desigualdade na distribuição de médicos, com superconcentração de médicos no setor privado e em diversas cidades e regiões. Sem definir políticas claras de formação adequada (o que incluiria uma vaga de Residência Médica para cada formando), de fixação e retenção de profissionais, de formação e ações concretas para atacar a raiz das desigualdades na concentração de médicos, de nada adianta o governo querer elevar a taxa geral do país de 1,9 médicos por 1000 habitantes para 2,5. Os novos médicos tenderão a se concentrar onde já há alto número e até mesmo excesso de profissionais.
Concentração de médicos no Brasil cresce a favor do setor privado
Apenas formar mais médicos, sem uma política de fixação e de valorização do profissional que atua no Sistema Único de Saúde, levará ao aumento da exclusão e das desigualdades no acesso a médicos. No estudo “Demografia Médica no Brasil”, divulgado em 2011, CFM e Cremesp tomaram como referência o número de “postos de trabalho médico ocupados” nos setores público e privado.
Contabilizando usuários de planos de saúde e postos médicos em estabelecimentos privados chegou-se à conta de que há 7,60 “postos disponíveis” para cada 1.000 clientes privados (ANS, AMS-IBGE). Já para a população usuária do SUS, a razão observada é de 1,95.
Em 2009, o setor privado disponibilizou 354.536 “postos de trabalho médicos ocupados”, enquanto o SUS ofereceu 281.481. Vale lembrar que um quarto da população brasileira é coberta por planos de saúde. O uso do método de regressão linear, pela pesquisa “Demografia Médica no Brasil” reforçou a tese de que o aumento da população médica favorece o privado. Para cada médico registrado (CFM) verifica-se o crescimento de 1,86 “posto de trabalho médico ocupado” no setor privado, enquanto no setor público o aumento é de 1,35 posto de trabalho por médico registrado.
Utilizando esse parâmetro, CFM e Cremesp projetaram que em 2020 será mais acentuada ainda a presença de médicos a favor do setor privado, o que desautoriza o governo federal a afirmar que novas vagas abertas irão necessariamente solucionar a falta de médicos no SUS.
Em 2020, mantido o cenário de crescimento (sem considerar as novas vagas de Medicina), a projeção é de que existirão 455.892 médicos no Brasil. No setor público existirão 394.771 postos de trabalho médicos ocupados e no setor privado 567.605 postos. O mesmo médico pode ocupar mais de um posto de trabalho. Atualmente apenas 25% da população se beneficia dos médicos disponíveis no setor privado.
Em outras palavras, mais vagas e mais escolas, sem mudanças no financiamento em saúde no Brasil, significarão maior distância entre o atendimento público e o privado, com prejuízo sempre maior para o público.
Considerações finais
A meta do governo federal de 2,5 médicos por 1.000 habitantes é uma mera abstração, desprovida de fundamento científico. CFM e Cremesp advertem que o plano do governo de ampliação de vagas de Medicina, desacompanhada de regras e metas claras de fixação e valorização dos médicos (sobretudo daqueles que atuam no sistema público de saúde), de mais recursos públicos para a saúde, e de garantia da qualidade do ensino médico, terá efeitos colaterais imediatos:
a. Fará crescer o contingente global de médicos na próxima década, mas acentuará as desigualdades a favor das regiões e municípios que já contam com alta concentração de profissionais.
b. Fará aumentar o contingente de médicos sem qualificação, tendo em vista a abertura de cursos sem condições adequadas de funcionamento, a inexistência de corpo docente qualificado para atender a nova demanda de alunos, e a insuficiência de vagas na Residência Médica, que nem sequer são suficientes para o atual número de formandos.
c. Irá beneficiar o setor privado da educação, com cursos de Medicina de péssima qualidade mas altamente lucrativos, devido ao elevado valor de mensalidade praticado.
d. Irá favorecer não o SUS, mas o setor privado e os planos e seguros de saúde, que já contam no país com quatro vezes mais médicos à sua disposição, sem contar as desigualdades regionais no acesso aos setores públicoe privado de saúde.
ANEXO 1
NOTAS SOBRE O ESTUDO DE PROJEÇÃO: “CONCENTRAÇÃO DE MÉDICOS NO BRASIL EM 2020”
1 – Os dados sobre a população de médicos foram obtidos no Banco de Dados do Conselho Federal de Medicina.
2 – Os dados sobre a população brasileira foram obtidos do sítio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no endereço ftp://ftp.ibge.gov.br/
Estimativas_Projecoes_Populacao/. Os dados integram a pesquisa do IBGE: “Projeção da População do Brasil por sexo e idade – 1980 a 2050”.
3 – O método utilizado para projeção populacional neste estudo foi a Taxa Composta de Crescimento, que leva em consideração a evolução da população entre duas datas. No caso da projeção de médicos a taxa média de crescimento foi calculada considerando-se a seguinte relação:
r= Taxa de crescimento anual
Pn= População no ano corrente
P0= População no ano base
n= número de anos intermediários
4 – Foi considerado o período de evolução de 2000 a 2010, onde Pn é representado por 364.757 médicos (dados de 2010) e P0 por 291.926 médicos (dado no ano 2000). O número de anos intermediários foi, então, de 10 anos. Chegou-se à taxa média de crescimento (r) de 2.495%.
Um método ligeiramente melhorado deste cálculo é a Taxa Composta de Crescimento Anual que pode ser obtida com o auxílio da seguinte fórmula:
Trata-se de uma aproximação geométrica da Taxa de Crescimento. Para o período base, a Taxa Composta de Crescimento Anual resultante é de 2,25%, que foi então utilizada para projetar o número de profissionais.
5 – Com a taxa de crescimento (2,25%) como parâmetro, a população pode, então, ser projetada para qualquer ano (t) com a fórmula abaixo:
A prioridade do estudo foi o ano de 2020. Deve-se considerar que este é um método simples de projeção populacional que não leva em conta todos os componentes demográficos.
6 – Nesse método, projeções entre 10 e 15 anos tendem a ser adequadas, desde que consideradas com alguma cautela, pois dependem basicamente da estrutura da população à qual se aplica o método proposto. Mas deve ser considerada a possibilidade de erro desta projeção em longo prazo.
7 – Aqui, assume-se que a taxa de crescimento ocorreria de maneira geométrica ao longo do período de projeção. No entanto, na prática, algumas variáveis podem interferir para que isso não aconteça.
8 – A principal variável que pode alterar a projeção poderia ser abertura de mais cursos/vagas de Medicina, que poderia gerar o aumento da taxa de crescimento da população médica.
9 – O presente estudo não pondera a modificação na taxa de crescimento do número de médicos causada pelas escolas médicas abertas em 2011, nem pelas 2.415 novas vagas de Medicina anunciadas pelo MEC em 2012. Tal fato poderá alterar este cenário projetado, podendo, inclusive, antecipar a frequência absoluta de profissionais.
10 – Para uma projeção ainda mais precisa são necessários estudos aprofundados que considerem:
1) a sobrevida dos médicos, que tende a ter diferenças por gênero e faixa etária. 2) a projeção da demanda de médicos e de serviços. Além de existirem fatores que interferem na oferta de médicos, como a abertura de cursos de medicina, a expansão do sistema de saúde, o surgimento de mais postos médicos de trabalho, outros fatores são decisivos para a demanda, como as necessidades de saúde, mudanças no perfil de morbidade e mortalidade, envelhecimento da população etc.
ANEXO 2
TABELAS DE RESULTADOS (PROJEÇÕES QUE INTEGRAM O ESTUDO DEMOGRAFIA MÉDICA NO BRASIL)
1 OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Departamento de Recursos Humanos para a Saúde. Spotlight: estatísticas da força de trabalho em saúde. Edição nº 8. Outubro de 2009.http://www.who.int/hrh/statistics/spotlight_8_p.pdf
2 ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). The Looming Crisis in the Health Workforce. How Can OECD Countries Respond. 2008, 96 págs.