Como a pandemia afetou a atuação dos bancos de olhos no Brasil

A esse respeito, a oftalmologista Adriana dos Santos Forseto, coordenadora do Curso de Especialização em Oftalmologia do Hospital Oftalmológico de Sorocaba e diretora médica do Banco de Olhos de Sorocaba (BOS) - Unidade Sorocaba, diz que os órgãos de saúde brasileiros recomendaram a suspensão da busca ativa e da captação de tecidos nos doadores falecidos em parada cardiorrespiratória, na qual foram impostas algumas restrições.
"Com isto, houve um impacto muito grande nos bancos de olhos de todo o país, mas, principalmente, no Banco de Olhos de Sorocaba (BOS), no qual trabalho diretamente, uma vez que foi suspensa a captação de doadores em parada cardiorrespiratória (PCR)", relata a médica, salientando que estas restrições do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) perduraram por seis meses. "Em nosso banco, houve uma redução ao redor de 50%, tanto no número de córneas captadas como de cirurgias realizadas. Em termos comparativos, realizamos 1.054 transplantes em 2020 contra 2.137 em 2019", complementa.
 
De acordo com a oftalmologista, dados semelhantes foram reportados pelo relatório de avaliação de produção dos bancos de tecidos do primeiro semestre de 2020, publicado pela Anvisa. "Nele, observamos uma queda de 47% no número de doadores de tecido ocular que foram triados e cuja doação foi obtida, e de 44% na estimativa do número de transplantes de córnea realizados quando comparado o primeiro semestre de 2020 ao mesmo período em 2019", aponta.
 
"Infelizmente a pandemia afetou muito a doação de órgãos e tecidos, e a córnea foi uma das mais prejudicadas no mundo todo, e no Brasil não foi diferente", avalia Sérgio Kwitko, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Córnea e Banco de Tecidos (SBC) e preceptor do Setor de Córnea e Doenças Externas do Serviço de Oftalmologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS). Segundo dados do SNT, antes da pandemia o Brasil vinha fazendo uma média de 7.500 transplantes de córnea por ano, caindo para 3.937 no ano de 2020, e recuperando um pouco em 2021, com 5.626 transplantes de córnea realizados até setembro de 2021. 
 
Kwitko explica que estes dados são gerais de todo Brasil e muda muito conforme a região. "No Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, fazíamos uma média de 350 transplantes de córnea por ano, tendo caído para 161 em 2020, e para 171 até setembro de 2021", comenta. Ele revela que a fila de espera continua aumentando, pois o número de pacientes precisando de um transplante de córnea não mudou, e os casos novos continuam entrando na fila de espera. "Aqui em Porto Alegre a fila estava zerada desde 2016 e, atualmente, a espera é de um ano", acrescenta.
 
Atuação dos bancos de olhos 
Conforme explica Adriana Forseto, em relação à córnea, os Bancos de Tecidos Oculares Humanos (BTOC) - conhecidos como bancos de olhos - são responsáveis pela retirada, processamento e conservação dos tecidos para fins de transplantes. Eles têm como atribuições garantir a qualidade e a segurança dos tecidos disponibilizados para uso terapêutico, de acordo com as Boas Práticas em Tecidos (Resolução-RDC Nº 55, de 11 de dezembro de 2015, parcialmente alterada pela RDC Nº 564). Para tanto, realiza a busca ativa de potenciais doadores. 
 
"Podem ser elegíveis para doação, doadores em morte encefálica ou coração parado (a grande maioria), este último desde que a retirada seja feita no máximo até 6 horas da PCR se o corpo do doador não tiver sido refrigerado, ou 12 horas se tiver sido refrigerado dentro de 6 horas após a PCR", esclarece. A médica informa que a legislação de doação de órgãos e tecidos no Brasil só permite a doação após a morte se autorizada pelos familiares. "Por este motivo, é muito importante que um potencial doador manifeste o seu desejo em vida, pois raramente a família é contrária à decisão do falecido", aponta. 
 
A oftalmologista diz que o conhecimento da população sobre o tema facilita muito o trabalho dos bancos de olhos e que campanhas contínuas sobre doações e transplantes auxiliam nessa divulgação. "Uma das formas que o BOS utiliza para ajudar a divulgar o ato da doação de córneas, por exemplo, é por meio do cadastro e fornecimento do cartão doador (www.bos.org.br), que representa o desejo em vida, para que a família se conscientize e autorize a doação no momento adequado", ressalta, salientando que o cartão é personalizado com as principais informações do doador e que ele também pode manifestar a intenção de doação de outros órgãos. 
 
"O cartão pode ser solicitado de qualquer lugar do Brasil e trará informações da Central de Transplantes, referência de sua cidade. No caso de óbito, um dos membros da família pode manifestar o desejo de doar os órgãos e/ ou tecidos ao médico que atendeu o paciente ou à comissão intra-hospitalar de doação de órgãos e tecidos do hospital", continua a especialista, esclarecendo que é muito importante o engajamento dos hospitais, de forma a fazer o elo entre os familiares de um potencial doador e o banco de olhos. "Além disso, é fundamental que os bancos de olhos tenham equipes descentralizadas de maneira a conseguir efetivar a captação frente a uma doação", orienta.
 
Escassez nas doações
Adriana explica que o grande diferencial de volume de doações de córneas em relação aos outros órgãos é a possibilidade de retirada de doadores com coração parado. "Ficamos praticamente seis meses com estoque mínimo de córneas, com escassez de tecidos até mesmo para situações de urgência, pois com as medidas impostas só eram permitidas captações de doadores em morte encefálica", relembra, comentando que em agosto do ano passado no BOS, por exemplo, houve apenas seis doações contra 490 no mesmo mês de 2019. "Em alguns momentos, ficamos com nossos 'estoques' zerados e geladeira de acondicionamento vazia", lamenta.
 
De acordo com a médica, com maior conhecimento sobre o coronavírus, sua interação com os tecidos oculares e possível baixo potencial de transmissão através do transplante de córnea, além de protocolos adotados em outros bancos de olhos fora do Brasil que mantiveram suas captações mesmo no auge da pandemia, foi possível demonstrar aos órgãos regulatórios que era possível retomar as atividades dentro de um rigoroso processo de segurança e qualidade.
 
Luciene Barbosa de Sousa, presidente da APABO-Brasil (Associação Pan-Americana de Bancos de Olhos) e professora da Pós-Graduação da Universidade Federal de São Paulo, afirma que os bancos de olhos estão agora tentando voltar à normalidade, porém, ainda existe uma diminuição no número de doadores, critérios rígidos em relação ao SARS-Cov2, além de situações administrativas difíceis de serem contornadas. "Existem cerca de 44 bancos de olhos no país, que seriam suficientes se trabalhassem de forma adequada. A maioria deles são bancos de olhos públicos, que não conseguem melhorar sua gestão e aí, consequentemente, não conseguem melhorar sua captação e capilaridade", observa a oftalmologista.
 
Na opinião de Sérgio Kwitko, a captação de córneas no Brasil melhorou muito nos últimos anos com a organização do SNT, das centras regionais, das equipes transplantadoras e com o apoio da APABO, reduzindo consideravelmente a lista de espera na maioria das localidades. "De uma maneira geral, antes da pandemia o número de córneas captadas atendia relativamente bem a demanda", analisa o médico. Adriana esclarece que do ponto de vista global, o Brasil é considerado um país autossuficiente (com córneas adquiridas nacionalmente que atendem às necessidades de sua população), e é o terceiro país líder em números absolutos de transplantes de córnea, atrás apenas dos Estados Unidos e da Índia. "Entretanto, existem desigualdades regionais", revela.
 
Ela comenta que, com o fim da pandemia, a situação tende a melhorar, mas de maneira desigual. "O impacto da redução do número de cirurgias realizadas fez com que a fila aumentasse em torno de 27% no Estado de São Paulo e 43% no Brasil", diz, enfatizando que no BOS, felizmente, graças a um esforço contínuo de toda a equipe, somente nos primeiros seis meses de 2021 já foi superado o total de tecidos captados em todo ano passado, com 5.978 córneas, e realizado um total de 990 transplantes. "Porém, temos ciência de que o caminho ainda é longo", avalia.
 
Para Kwitko, a tendência agora é retornar ao patamar pré-pandemia. "Mas muito trabalho deve ser feito para zerarmos as filas de espera novamente", enfatiza o especialista, declarando que a exigência do RT-PCR para Covid para doações de córnea no Brasil é algo que ainda limita de forma considerável o número de doações, ao contrário de vários países europeus e nos EUA, onde não há esta exigência. Ele aponta que não há nenhum caso relatado na literatura de transmissão da Covid-19 por transplante de córnea, até porque o vírus já foi isolado na lágrima, mas não na córnea. "Mesmo alguns vírus já isolados na córnea, como o do HIV, não transmitem a doença para o receptor (pelo menos até hoje nenhum caso foi relatado). Deve ser feito um trabalho intenso novamente com a população em geral sobre a importância da doação e com as famílias dos potenciais doadores", finaliza o médico.
 
 
Restrições iniciais impostas pela pandemia (março - abril/2020)
No que diz respeito ao uso terapêutico de tecidos humanos, a Gerência de Sangue, Tecidos, Células e Órgãos (GSTCO/Anvisa) corroborou o posicionamento da Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes do Ministério da Saúde (CGSNT/MS) disposto na Nota Técnica nº 25/2020-CGSNT/DAET/SAES/MS e na sua atualização, Nota Técnica nº 34/2020-CGSNT/DAET/SAES/MS, impondo, entre outras medidas:
- Suspensão da busca ativa e captação para doação de tecidos em doador falecido por parada cardiorrespiratória (PCR) (retorno das atividades a ser avaliado pela CGSNT); 
- Que os transplantes de córnea e de tecidos musculoesqueléticos somente fossem realizados em situações de urgência;
- Manter a captação de tecidos oculares nos doadores falecidos em morte encefálica para atender a demanda local;
- Manter estoque mínimo de córneas ópticas e tectônicas, de acordo com histórico de uso.
 
Indicações para transplante de córnea
Adriana Forseto, diretora médica do Banco de Olhos de Sorocaba (BOS), cita como opções em que é possível realizar o transplante de córnea, além do ceratocone, as disfunções endoteliais da córnea, quer seja por Fuchs ou falência pós-cirúrgica, ceratites infecciosas (cicatricias ou ativas), leucomas, distrofias, retransplante, entre outras. "A sobrevida em dez anos para doenças como ceratocone, por exemplo, chega a ser superior a 90%. Com o avanço das técnicas cirúrgicas, as taxas de sucesso têm aumentado consideravelmente?, esclarece. 
Ela diz que, atualmente, pode-se fazer o transplante seletivo da(s) camada(s) da córnea acometida(s), melhorando esta sobrevida e reduzindo o risco de rejeição, como no caso do transplante lamelar anterior profundo para ceratocone, ou transplante endotelial para as disfunções do endotélio. "Continuamos ainda com prognóstico reservado para os transplantes realizados em processos infecciosos ativos?, destaca. Segundo Luciene Barbosa, presidente da APABO-Brasil, as taxas de sucesso do transplante são variáveis dependendo da indicação e situação prévia do receptor. "Pode variar de 80% nos primeiros três anos em casos como ceratocone e bolhosa, sem nenhuma outra comorbidade, ou 30% se retransplante, glaucoma associado e vascularização.? 
 
Trabalhando em prol de melhorias nos bancos de olhos brasileiros
A APABO-Brasil (Associação Pan-Americana de Bancos de Olhos) atua para melhorar o número de doações, captações e distribuição de córneas no Brasil. "No momento, estamos tentando fazer com que os banco de olhos tenham condições de se manter funcionando, com funcionários capacitados", relata a presidente da Associação Luciene Barbosa. "Isso porque, recentemente, o Cofen - Conselho Federal de Enfermagem - decidiu que somente enfermeiros podem exercer atividades relacionadas com o doador dentro de um banco de olhos", explica.
Ela afirma que, antigamente, havia técnicos de enfermagem e ouros profissionais de saúde, além dos próprios enfermeiros. "Eles estão vistoriando os BOs e exigindo que eles parem de trabalhar em 7-30 dias.  O resultado disso é que os bancos precisam contratar e treinar outras pessoas para assumirem estas atividades em tempo muito curto, o que pode impactar no número de captações e qualidade das mesmas.  Muito grave!", desabafa a médica. 
Além disso, ela revela que os oftalmologistas estão trabalhando com a Anvisa na nova RDC para bancos de tecidos e com o SNT para nova portaria. "A atualização dos colaboradores dos BOs e transplantadores é constante preocupação da APABO. "Nossos cursos foram prejudicados durante a pandemia, ficando somente com lives. Agora em 2022 retornaremos com cursos de certificação, atualização em gestão de qualidade e novas técnicas cirúrgicas", conclui Luciene.
 
 
 
 
Fonte:
Revista Universo Visual
Autor
Flávia Lo Bello